O que uma mulher que teve câncer quer que você saiba

Foto de Francine Butignon

Em 2020, dois dias depois de fazer 26 anos, fui diagnosticada com câncer de mama. Era um diagnóstico e também uma nova maneira de olhar para a existência. Tive a impressão de que a vida estava escorrendo como água pelas minhas mãos. Pensava que aquilo decretava o fim da minha pessoa. Que eu não existiria mais. Que eu nunca mais seria eu mesma.

E de fato, eu nunca mais seria eu mesma, eu já começara a ser outra.

Foto de Francine Butignon

Quem me visse naquela madrugada conversando com a minha mãe sobre meu passado e sobre todos os planos que eu tinha acerca do que queria concretizar a partir daquele instante pensaria que era uma loucura o tanto de coisa que eu era capaz de enxergar pela experiência de finitude marcada na pele. Era uma loucura eu me sentir inteira pela compreensão da finitude da vida? Era uma loucura compreender o diagnóstico de câncer como uma oportunidade de viver melhor sem me preocupar com coisas tão banais? Loucura é viver no modo automático.

A partir daquele momento o tempo nunca mais me escorreu pelas mãos. O sorriso vinha entre as lágrimas exatamente por isso: eu tive a oportunidade de compreender a finitude e continuar vivendo, não apenas sobrevivendo, ufa!

Compreendi em tempo, ainda bem. Muitos passam pela vida sem compreender e apenas deixam que a vida passe. O diagnóstico de câncer de mama fez com que eu ressignificasse minha vida inteira e diante de tudo eu só poderia agradecer por todas as possibilidades que estavam ali diante de mim. Todas as possibilidades estavam ali diante de mim. A vida era a mesma, mas eu não. Por isso.

Passar pelo diagnóstico e tratamento do câncer de mama foi uma experiência marcada por muitos momentos. Existe o momento em que você não acredita que aquilo está de fato acontecendo e, dias depois a ficha começa a cair. É preciso que a tristeza dê espaço para tudo o que precisa ser feito a partir dali.

Foto de Francine Butignon tirada por Flor Carrizo

Cada próxima fase demandava uma nova eu mesma: cada semana, cada exame, cada momento. Era tudo novo, nada eu sabia de antemão: e quando é que sabemos de antemão alguma coisa nessa vida? Eu tive muitas dúvidas e questionamentos e ouvi muitas vezes como resposta “depende do seu organismo, do seu corpo, da sua pele”. A pele que era minha e eu não sabia como ela reagiria antes de reagir. Eu me questionava quais seriam os efeitos colaterais do tratamento (quimioterapia) na minha própria pele.

Entrei em contato com toda a dor que estava no caminho: a dor de me saber com câncer, a dor das cirurgias, a dor do pós-cirúrgico, a dor dos efeitos da quimioterapia. A dor no automático parece doer menos: saber o caminho da dor e anestesiá-la. É que a dor dos dias vividos no automático é um incômodo cômodo, acomodado, acostumado. Ao mesmo tempo, eu via a vida de uma maneira nova e me indagava se ela realmente acontece para as pessoas que não se permitem sentir nada-além-do-esperado e contam horas de vida entre um prazer e outro, evitando sentir a dor, evitando demonstrar, evitando dizer, evitando tocar, evitando a vulnerabilidade, evitando, assim, a vida. Eu entre um efeito colateral e outro: era a vida acontecendo. Que saibam: o efeito colateral de viver é sentir. E eu sentia cada fase da minha trajetória na luta contra o câncer.

Compreendi a dor de outro modo: a dor, assim como a morte, é inevitável, em algum momento ela vem, porque existe. A dor não precisa (nem deve) fazer morada em nós, tampouco ser negada, ou escondida. Existiria alegria se não houvesse dor? Entendi que sofrimento e felicidade podem coexistir: brota alegria no meio da dor, brota uma flor no meio do asfalto, brota vida apesar da certeza da morte. Isso me fez lembrar de uma frase do Bukowski: “você não pode vencer a morte, mas você pode vencer a morte durante a vida, às vezes. E quanto mais você aprender a fazer isso, mais luz vai existir”.

O que me mantinha acordada? O significado que eu construía para tudo aquilo.

Foto de Francine Butignon

Eu atravessava a dor como quem atravessa um rio: sem saber o que tinha no fundo, mas com uma vaga ideia do que poderia encontrar durante o nado. A minha música preferida, que é de um cantor chamado Rubel, e que sempre me traz calma tem uma frase que diz “lança o barco contra o mar/venha o vento que houver/e se virar, nada”. O barco virou. No começo, achei que iria afundar, esse era meu primeiro pensamento ao acordar e sentia angústia por todos os medos e incertezas que latejavam na minha cabeça. A falta de controle e minha imaginação me apavoravam.

Tive sorte por estar rodeada por pessoas me estenderam mãos e bóias quando eu ainda não sabia muito bem como atravessar esse rio enorme que os médicos chamavam de tratamento contra o câncer. Engoli muita água no início e a insegurança fez parte do percurso: até atravessar todo o rio, eu não teria certezas acerca do que iria encontrar no fundo e nem quando de fato chegaria à outra margem. Às vezes, a gente tem a mania de querer controlar, prever e acreditar que sabe muito sobre o futuro, mas a verdade é que ninguém sabe. E o câncer é uma doença multifatorial, estava acontecendo comigo, mas pode acontecer com qualquer pessoa.

Foto de Francine Butignon

Com o tempo percebi que estava aprendendo muito bem a nadar nessas águas. Às vezes eu mergulhava mais fundo, às vezes até dava cambalhotas e sorria como nunca imaginei. E no meio das incertezas todas, eu me vi feliz pela chance que tinha de ficar bem. Comecei a sentir cada vez mais que não só existo, eu vivo cada momento de verdade e agradeço por cada respiro. Parece estranho, eu sei, também nunca entendi muito bem pessoas que agradecem depois que são acometidas por doenças difíceis assim, mas passei a sentir na pele e agradecer, não pela doença em si, mas por cada coisa que antes me passava despercebida e agora eu via com outros olhos.

Fui acompanhada pelas palavras que eu recebia de todos que me escreveram e me apoiaram durante o processo e elas me serviam como um trampolim no meio da água (obrigada). Aprendi que quando as coisas na vida estão pesadas, é preciso não se esquecer de que existem outras mãos dispostas a ajudar: encontre-as, tenha a sorte de se deparar com elas na vida e bem se queira perto de quem bem te quer.

Eu atravessava um rio enorme e escolhia apreciar a vista e sentir o amor que frequentemente chegava até mim. Me considerava muito sortuda pelas pessoas que estavam ao meu redor, pela minha rede de apoio. Eu atravessava e encarava tudo aquilo de peito aberto para não ficar à margem… De mim mesma.

Foto de Francine Butignon

Me disseram que o meu cabelo iria cair com a quimioterapia. Raspar não foi uma escolha, eu não podia optar por ser diferente. Imaginei muitos cenários: raspar e colocar peruca, raspar e usar lenço, raspar e deixar aparente. O peso da perda, a tristeza e a insatisfação estavam em qualquer cena que eu imaginasse. O cabelo começou a cair. Nada diferente do esperado, mas outros significados surgiram. Me senti livre e leve: essa perda me trouxe tantas outras coisas.

Se a história é minha, se o sentido que dou para os fatos da minha vida é meu, então por que não vivenciar esse momento da forma mais bonita possível? Eu posso estar em qualquer cenário: com peruca, com lenço, careca.
Sendo. Sendo eu mesma. Vivenciando a minha narrativa do jeito que eu quiser.
Perdi cabelo, ganhei força, ganhei sorrisos, ganhei apoio, ganhei amor. Perdi cabelo, ganhei calma, ganhei paciência, ganhei leveza. Perdi cabelo, ganhei novas perspectivas, ganhei novas possibilidades, ganhei um novo olhar para aquilo que de fato importa.
O cabelo cresce depois.
Ganhei vida.

O diagnóstico de câncer de mama me tirou do eixo, virou minha vida de cabeça para baixo, doeu em mim. Me trouxe telefonemas, mensagens, conversas, preocupações e noites sem dormir. Me tirou o chão, me deixou suspensa, como alguém sem asas que precisava aprender a voar naquele exato instante. Ele rasgou meu peito e me fez maior do que eu pensava ser. Me fez descobrir tudo aquilo que de fato importa e quero levar comigo, deixando para trás o peso que não cabe em mim, que não cabe a mim.

Foto de Francine Butignon

Ele me trouxe uma marca na pele e costurou memórias bonitas aqui: ainda costura e me propicia novas cores para ver o mundo, novas lentes para esses olhos que não parecem ser os mesmos e histórias a cada ponto de reflexão. Emendou ideias com elaborações, me trouxe equilíbrio para andar na corda bamba dos dias, me trouxe calma e me trouxe medo, que passei a incluir na minha trajetória sem negá-lo. Nós passamos por isso. Eu e o medo. Eu e essa marca que deixa subentendido a todo momento: aqui doeu, aqui sarou. O câncer fez com que eu ressignificasse toda a minha forma de viver.

Já era de se esperar que da minha maior fragilidade diante da vida nasceste a minha maior força: a vontade de vivê-la, sem me esquecer que isso é tudo o que tenho. O câncer foi embora de mim e me deixou aqui, mais viva do que nunca. Ele me fez descobrir que embaixo de mim há um chão a partir do qual uma nova eu poderia ser reerguida. E se reergueu.

É sempre muito importante ressaltar que essa foi a minha experiência na luta contra o câncer de mama e, tal como qualquer experiência, ela é singular. Essa foi a maneira que eu senti tudo o que me acontecia e cada pessoa sentirá de uma forma muito distinta, por possuírem histórias de vida muito diferentes da minha. Tiveram momentos muito difíceis, principalmente no início, mas com o acompanhamento da minha psicóloga e com a ajuda de toda a minha rede de apoio, foi possível traçar estratégias para lidar com cada fase da melhor maneira. Não existe um jeito certo de passar pelas dificuldades, existe o seu jeito e aquilo que te fará bem no processo.

Receber um diagnóstico de câncer é como receber uma mensagem da vida dizendo: você está morrendo já faz um tempo e nem percebeu. Nascer deveria ser um diagnóstico, penso eu. Estamos morrendo desde que nascemos e parece que muitas vezes nos esquecemos disso. Morremos sim o tempo todo, mas morremos mais ainda quando nos podamos por medo, a cada frase que não dizemos e a cada gesto que estupidamente decidimos não fazer. Morremos muito mais quando escolhemos deliberadamente não viver o que temos no agora.

Foto de Francine Butignon tirada por Victor Daguano

Depois que descobri que um câncer estava crescendo no meu peito, arranquei-o e decidi viver de peito aberto. Agora (e em todos os agoras que tenho), eu me faço o favor de que se for para pensar na morte, que eu pense antes na vida. Meu medo é o de não viver o que posso enquanto estou aqui, o resto é invenção. E se eu pudesse dar um conselho que ninguém me pediu, seria esse: o de inventar uma vida que vale a pena ser vivida.

Com carinho, Fran.

✍ Relato de Francine Butignon

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